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terça-feira, outubro 04, 2011

Um Olho à Benfica #52




O Pequeno Genial



Desculpem maçar-vos com um texto mais longo do que habitual, mas passa-se o seguinte. A prosa que a seguir lerão - os mais corajosos - é a introdução do livro que acabei de escrever e que me preparo para editar. Trata-se da biografia do Chalana. Há discussões que não alimento no futebol. Uma delas é sobre quem terá sido o melhor jogador português depois do Eusébio. Para mim, foi o Chalana. Ponto final, parágrafo. O que vos proponho agora é a publicação, em rigorosa e exclusiva estreia da introdução do livro. É uma história ficcional com que resolvi iniciar a minha homenagem ao mais fantástico jogador português que vi jogar - o Eusébio já não pode considerar-se do meu tempo.



Peço desculpa pelo texto longo, mas creio bem que vale a pena, porque é de um benfiquista para muitos benfiquistas e muitos deles nunca tiveram a felicidade de ver jogar este extraordinário jogador. Sinceramente, espero que não levem a mal e que gostem da homenagem prestada a um verdadeiro símbolo da grandeza ímpar do Benfica.



Introdução



A bota do Chalana



Certo dia, numa feira internacional de botas de futebol, estava na montra principal uma chuteira, considerada o último grito da moda futebolística. Uma bota sofisticada, com todo o luxo a que qualquer actual aspirante a craque da bola julga ter direito. Climatizada, de forma a prevenir odores irrespiráveis, dirigível por controle remoto e até com air-bag traseiro, para prevenir as famosas e perseguidas «entradas por trás». Tinha também, no seu exterior, uns sensores laterais que estabeleciam comunicação com a sua congénere mais próxima. Depois de muitos estudos, os autores desta bota inteligente, ruminaram na instalação de um mecanismo de precisão sensorial, que permitisse aos jogadores uma certeira e rápida circulação da bola. Só faltava mesmo mini-bar e pay-tv. A primeira equipa a utilizar estas sensacionais botas foi o Chelsea de José Mourinho, como se sabe, o maior apóstolo do futebol tecnológico. Fanático pelo detalhe, escravo da minúcia, o melhor treinador do mundo ficou fascinado com o alcance imediato desta bota na modificação extrema que provocaria no futebol. É talvez reveladora a sua curta mas demonstrativa declaração de apoio à nova bota: «Assim, até eu seria o melhor jogador do mundo». Pelos vistos, aquelas botas fazem milagres. Ainda babados pela inovação, poucos repararam numa outra bota, na montra ao lado, desprezada pelo tempo e carcomida pela gula tecnológica. Um pecado mortal para a humanidade, uma normalidade no futebol. Tinha um ar pútrido, apresentava uma nítida curvatura que nascia a montante do calcanhar e apenas terminava a juzante da biqueira e era, portanto, uma espécie de pé-descalço das botas de futebol. E no entanto, tinha um brilho intangível, uma aura que a cercava e amarrava os olhos de uma criança, por instantes desviados da quintessência da tecnologia desportiva. O que fariam aqueles olhos, debruçados sobre uma bota velha, arregalados de fascínio, galgando umas lentes grossíssimas que mascaravam a miopia de nascença? Diante daquela bota, aquele par de faróis seriam luzes intensas contra o nevoeiro da sofisticação que baixava aos baldios da tecnologia. O que é verdade é que aquela bota guardava o mistério de uma certa fé no jogo.



De súbito, aqueles olhos escondidos atrás de uma densa amálgama de dioptrias, foram abalroados pela confusão reinante na montra ao lado, onde o cotovelo do mais forte prevalecia sobre o tórax do mais fraco. Seguia-se um concurso, promovido pela famosa marca que apostou milhares de euros na certificação da nova e estupenda bota. Tudo não passava de uma acção infalível de marketing, a que se submetiam dez concorrentes escolhidos ao acaso entre o estimável e babado público. Tudo isto, em directo, com as televisões como testemunhas evangélicas do novo milagre da precisão. Os concorrentes eram simples figurantes da escandalosa delinquência publicitária que seria o anúncio da perfeição no futebol. Estavam todos bem calçados, os concorrentes e os multimilionários autores da bota. O objectivo era acertar com uma bola, a uma distância de cem metros, num buraco de perímetro pouco maior do que o objecto atirado. Missão impossível com uma bota normal, nem mesmo à medida dos maiores super-heroís do futebol mundial. Agora, com esta bota, era quase possível colocar duas pessoas nas extremidades opostas de uma montanha a trocar certeiros e infalíveis pontapés na bola. Incrível. Isto, claro, se nos fiarmos no exagerado texto de apoio inscrito num mailing enviado para as maiores sedes de futebol em todo o mundo.



O concurso começou e ao primeiro pontapé, bola fora do alvo. Inquietação generalizada mas convencimento de que tinha sido apenas um pequeno desvio humano na perfeição tecnológica. Como era possível? Os remates seguintes, mais de cem – já que o número de concorrentes alastrou – confirmariam que o futebol não é para todos nem admite a intrusão dos novos pregadores da ciência robótica. Nem um remate certeiro. Em desespero de causa, já com as televisões desmobilizadas, os cabos recolhidos e os anunciantes em fuga, deu-se uma imagem de epilepsia colectiva. Chegavam, entretanto, reforços: a marca desportiva não se dava por vencida e para provar a eficiência do seu invento, contratou a peso de ouro, Ronaldinho, Zidane e Figo para novo teste. Primeiro, o brasileiro dentudo, gingão e melhor do mundo e arredores. Falhou. Pela primeira vez, Ronaldinho perdeu aquele sorriso cinematográfico. Depois, Zidane, com os dedos dos pés apoiados nas extremidades como uma bailarina, voando para a bola, mas aterrando na crua realidade. Novo e estrondoso falhanço. Agora, Figo, avança determinado, verdadeiro Átila dos campos de futebol, faz a paradinha, engana o público e no momento em que todos esperam o estrepitoso embate com a bola, Figo olha para o lado e suspira. Aqui sim, deu-se um momento de viragem. O craque português faz uma diagonal até à montra ao lado e olha para a bota velha e caduca. Parecia já um tamanco, mas Figo colou o seu olhar no menino míope e viu-se a si próprio, nos anos da sua adolescência. Esse recuo no tempo fá-lo reconhecer aquela bota, já que durante muito tempo não se cansara de a ver. É Figo que se lembra que o último homem a descalçar aquela bota tinha sido um fenomenal jogador chamado…Chalana. O seu ídolo em criança. Aquele olhar de Figo e do menino míope convocam Chico Buarque numa das suas inúmeras definições sobre o jogo: «O drible do corpo é quando o corpo tem presença de espírito». Aquela bota era a casa de todos os espíritos benignos do futebol. Por isso o brilho, a aura. Aquela bota parecia acabada por fora, mas imortal por dentro. Tinha o forro do talento e o suor do génio. Figo não chutou a bola, deixou que fosse o menino míope a fazê-lo. Calçou-lhe a bota velha, que tinha sido de Chalana e milagre, a bola entra, guiada pelos bons espíritos. Para refazer todos os queixos que entretanto caíram, seriam necessários agora vários meses de paciente cirurgia reconstitutiva. Uma bota velha e um menino míope tinham vencido os estúpidos pergaminhos do futebol evolutivo. E melhor do que isso, Chalana voltava a ser o maior. Para que não o esqueçam os que o viram jogar e para que o saibam os que nunca lhe puseram a vista em cima.







PS: Esta é uma história apócrifa mas que não muda o essencial: Chalana foi o maior jogador português de sempre, depois de Eusébio. Por isso, este livro é a homenagem ao meu ídolo de infância. Resolvi escrevê-lo, um dia, quando o meu filho mais velho me perguntou, depois de ter visto o pai, a entrevistar na televisão, o grande Chalana: «Ó pai, quem era aquele senhor que estavas a entrevistar?». Olhei para ele, com aquela ternura com que o habituei e respondi-lhe: “Filho, ouve bem. Quem é o jogador que mais gostas de ver?» Eu já sabia resposta, mas mesmo assim, soube bem ouvi-la de novo: “O Ronaldinho”, disparou o meu filho, com aquele enfado juvenil de quem é massacrado sempre com a mesma pergunta. “Pois bem, filho, quando eu era da tua idade, o Chalana esteve para mim como o Ronaldinho está para ti”. É para isso que serve este livro.





José Marinho

9 comentários:

Unknown disse...

aquele maravilhoso pé esquerdo não tinha comparação, nem futres, figos ou ronaldos. Mas como futebolista não era tão completo como os 2 últimos. O Chalana era talento puro, mas nunca teve o aconselhamento necessário para que a sua carreira fosse galáctica, a saída do Benfica para o bordéus e a sua consequente volta foram as piores opções que fez, a primeira por ser um clube apenas razoável, a segunda porque foi vítima de gente sem escrúpulos que não quis pagar o valor que merecia e que promoveu o agravamento da sua lesão encurtando significativamente a sua carreira. a juntar-se a essas más opções o acto de estar junto de uma medusa que o ia levando à desgraça completa. As saudades que tenho de ver um futebolista no glorioso com aquele génio bruto. Se bem que o aimar tenha um cabelo à chalana e seja por vezes também genial, não se compara em termos de técnica

Anónimo disse...

o chalana era genial !!!jogava no campo como se fosse na rua com os amigos.

Pedro disse...

Infelizmente não tenho grandes recordações do pequeno genial a jogar. Tenho que me socorrer dos videos de então e sim, sem sombra de dúvidas, que estamos perante alguem genial a tratar a bola.

Hoje valeria muitos milhões. Gostei de o ver ligado à estrutura da equipa e tenho pena se actualmente está afastado. Enquanto treinador foi campeão pelos juniores após muitos anos de secura. Não esquecer isso.

Unknown disse...

Foi queimado com aquele final de época penoso, porque senão ainda hoje estaria na estrutura, mas com o seu voluntarismo voltou a dar o peito às balas. Eu não me esqueço daquela dupla dinâmica que dinamitava as equipas pelo nosso flanco esquerdo. Nem o penalty cavado a 5 metros da área contra a união soviética, ou o brilhante europeu em frança onde o génio do platini e alguma protecção arbitral nos afastaram da final.

John Wakefield disse...

Não sou dessa geração e não vivi esses gloriosos momentos, mas pelo que foi veiculado na imprensa, não duvido que se trata dum jogador que deu muitas alegrias ao Benfica e se revelou como um dos jogadores mais talentosos do seu tempo...
Chalana também faz parte do património do clube...

Hugo disse...

Tenho 37 anos e já vi bons jogadores a passarem pelo meu Clube (Rui Costa, João V. Pinto, Valdo, Isaias, Futre, Stromberg, Thern, Mozer, Ricardo Gomes, Paulo Sousa, Poborsky, Kulkov, Iuran, Mostovoi, Rui Aguas, Pierre van Hooijdonk, Filipovic, Magnunson, Nuno Gomes, Cardozo, Saviola, Luisão, David Luiz, Di Maria e felizmente Aimar).
Eusébio, Coluna e Simões não vi e tive pena. Pelos relatos do meu Pai e Tios, Eusébio era mesmo um Deus (nem Pelé) e Coluna estava logo de seguida.
Quanto ao Pequeno Genial (Fernando Chalana), foi de facto aquele que mais me marcou nos principios do futebol.
Aqueles dribles com o corpo, aqueles "nós" cegos, aquela velocidade, aquela colocação de bola nos avançados... ufff.
O melhor pé esquerdo juntamente com Maradona que eu vi no futebol.
O Futebol Mundial, ficou a conhecer o Chalana no Euro 84, mas nós por cá já sabiamos o que ele era.
No Euro 84, banalizou um gajo chamado Platini e "ajudou" outro (Jordão) a ser conhecido.
Nunca mais me esqueço de um lance no Euro, que senta um defesa duas vezes seguidas, na mesma jogada, e depois coloca a bola no Jordão e este faz golo.
Lembro-me quando jogava na rua e na escola, que queria ser o Chalana.
Tenho saudades do Chalana...

João Bizarro disse...

Único jogador de futebol a ter espaço numa parede do meu quarto.

Anónimo disse...

O melhor jogador que alguma vez vi jogar ao vivo.
Fora de série, um génio.
Como ele nunca tinha visto ninguém nem voltei a ver.

Johnny Rook disse...

Depois de Eusébio Péle e Maradona, os três ÚNICOS (porque foram os únicos jogadores que até hoje, sózinhos, resolveram dezenas de jogos e campeonatos. Mais ninguém o fez.), foi Chalana o jogador de futebol mais espectacular que vi.

Curiosamente reparei há muito tempo que a forma de jogar de Messi me fazia lembrar alguém e fez-se-me luz: era o Chalana.

Para mim são parecidos numa só cracterística que é única e que os faz ser diferentes de todos os outros: A forma de conduzir a bola em corrida. Sempre colada ao pé ou a uma muito curta distância que lhes permite numa fracção de segundo mudar de direcção, fugir às pancadas e sentar os adversários no chão. E para ser mais difícil ainda; sempre de cabeça levantada. Experimentem fazer isto e logo verão que é praticamente impossível para 99,9% das pessoas.

Mas Chalana tinha outra característica que nunca mais vi em jogador algum e que Messi também não tem: Jogar tão bem, seja com o pé esquerdo, seja com o pé direito. Para Chalana era igual. Isto dava-lhe uma arma insuperável e que lhe permitiu ser o jogador que mais adversários sentou por metro quadrado.

E não se esqueçam de uma coisa que também a mim me enganou durante muito tempo. CHALANA NÃO ERA, NEM É CANHOTO. Enganou-nos a todos muito bem. E descobri isto porque ele o disse recentemente numa entrevista.

Chalana merece ele também uma estátua, um busto, no futuro museu do Benfica.Representará uma homenagem ao génio do jogador de futebol.
Aliás, espanta-me a incompetência de quem dirige ou o estádio ou o marketing da SAD em nunca se ter lembrado de preencher todo o exterior da Luz com grandes fotos dos monstros sagrados da História do Sport Lisboa e Benfica. Além do mais embelezava o exterior e tirava-nos aquele cimento da vista. Estão a ver aqueles panos com os clubes que aparecem no genérico da Premierligue ? Seria algo do género.